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A Coragem de Ensinar: Um livro imprescindível para Educadores
Pablo Gonzalez Blasco *

Comentários sobre o livro " The Courage to Teach: Guide for Reflection and Renewal", de Parker J. Palmer.

De tanto promover e falar, em aulas e congressos, de um livro que muito agregou à minha tarefa de professor e já comentado neste espaço, vim recolher um importante fruto. Um colega, amigo e assistente às minhas reuniões de formação de professores, apareceu numa delas com este livro. É a continuidade do anterior; ou melhor, uma lente amplificadora das importantíssimas questões colocadas pelo autor em obras precedentes, e também de modo sistemático no Centro de educação que ele fundou e dirige (www.couragerenewal.org/).

Esta guia –assim denomina o autor a sua obra- é o mapa para a viagem que conduz à intimidade do professor. Uma viagem que mergulha no silêncio e na reflexão dos que se sabem chamados vocacionalmente a ensinar. Não é um livro de pedagogia, nem sobre processos educacionais. É uma análise profunda –uma verdadeira dissecção- do sujeito docente, do professor. Este é o principal recado que o autor repete –por escrito, e nas entrevistas recolhidas no DVD que acompanha o livro-, e que se poderia sintetizar no seguinte pensamento: “Quase todos se perguntam o que têm de ensinar (conteúdos); alguns pensam em como fazê-lo (técnicas) e a quem devem ensinar (público); mas poucos alcançam a questão chave: quem está ensinando? Porque, afinal, ensinamos o que somos”. Educar vai muito além dos conteúdos, ou das técnicas, depende radicalmente de quem está ensinando, e de como cuidamos dele – quer dizer, de nós mesmos professores. “A técnica é o que se utiliza até que aparece o verdadeiro professor: um simples esquentamento”. Essa questão primordial está reforçada na primeira parte do livro, resumindo e enfatizando os temas abordados no livro mãe, publicado dez anos antes.

O autor, com a experiência de mais de 30 anos de docência, adverte também sobre a importância de criar um espaço confortável para a reflexão, tanto individual como em grupo. Um cenário que deve distanciar-se das correrias do dia a dia, sem distrações; enfim, um verdadeiro retiro, no sentido clássico da palavra. Esse contexto de reflexão tem de criar um espaço de peculiares características. Um espaço intelectual, onde todos possam colocar suas questões e escutar atentamente os outros. Um bom professor tem de saber abrir espaço para todos. Mais pergunta do que fala. Perguntas abertas, honestas, não pegadas. Um espaço emocional, porque devem contemplar-se os sentimentos dos participantes. E para isso a atitude de quem escuta é essencial; não se trata de achar soluções pela via rápida – nunca funciona, apenas intimida os participantes. Respeitando a confidencialidade que se apalpa e se vive, num ambiente que inspira confiança. Espaço espiritual onde se permite que cada um escute o seu mestre interior, e faça a sua reflexão sem querer consertar a alma das pessoas. A alma não se conserta; acolhe-se para que ela mesma encontre a sua cura e crescimento. Destaca-se a importância do silêncio como pano de fundo, e o respeito pelo timing de cada um. E, nesse ambiente, empenhar-se em buscar a verdade, conceito que o autor define como: “a eterna conversação sobre as coisas que realmente importam, levada com paixão e disciplina”.

A segunda parte do livro contém um extenso roteiro de perguntas e questões como base possível para a discussão dos capítulos do livro mãe. Quer dizer, é propriamente o guia condutor. Os tópicos são muitos, e o autor não deixa de advertir que qualquer programa, curso para professores, retiro, ou atividade reflexiva não deve incorrer no erro de querer abrange-lo tudo. Não se trata de esgotar os temas – de per si inesgotáveis, pois é pura antropologia, quase diríamos uma metafísica da ação docente- mas de respeitar as necessidades e os momentos de cada um, sabendo que estas discussões requerem alocar tempo com generosidade para que sejam frutuosas.

Por isso, para quem se aventura numa primeira leitura deste Guia, alcançada a segunda parte, o melhor será que assista os 70 minutos do DVD que são absolutamente imperdíveis, e um resumo perfeito do pensamento do autor. Em inglês claro, com pronúncia lenta e pausada –um ritmo de verdadeiro professor- as questões chave são colocadas e ilustradas.

Lá encontrará perguntas instigantes: Por que sou professor? O que espero disso? Qual é o legado que queiro deixar? Conecto com os estudantes? E lá encontrará verdades tremendas: os estudantes sabem avaliar muito bem os professores. E as histórias ilustrativas: “Lembro-me de uma jovem estudante a quem perguntei sobre os melhores professores que ela teve. Respondeu que teve alguns muito bons, mas que não poderia descrevê-los, porque eram diferentes. Mas, a seguir, acrescentou que poderia sim falar dos professores ruins, porque esses eram todos iguais. Diante da minha perplexidade, continuou explicando que os professores ruins lembravam-lhe as personagens das histórias em quadrinhos cujas falas estavam sempre envolvidas em balões. Os balões das falas e dos conteúdos são algo exterior, que nada tem a ver com a pessoa do professor. Esses eram os professores ruins: os que ‘vomitavam’ conteúdo, da boca para fora, como algo alheio a eles. Sem paixão, nem entusiasmo. Personagens de quadrinhos”.

Com serenidade, o Professor Parker Palmer vai deliciando-nos com pensamentos e verdades contundentes. “Refletir traz surpresas. Na nossa cultura pensamos que pelo fato de dizer alguma coisa, já conhecemos a essência dessa coisa. Fazemos afirmações gratuitas, sem dar-nos o trabalho de refletir”. Em outro momento: “O que se chama motivação na educação, é muitas vezes simples medo, uma cultura de ameaças: se você não faz isso não chegará lá, será superado pelos seus pares, não terá espaço. A cultura do medo não motiva, antes paralisa. Depois estão também os medos do professor de opor-se ao sistema. Isso requer coragem. Lembro de uma historia que li numas memorias. Descreve a figura de Mr. Porter, um professor de matemática, negro, que ensinava numa escola no Harlem. Reparou que um dos seus alunos carecia de qualquer habilidade para matemática, não havia forma de que aprendesse. Mas reparou também que tinha talento para escrever. Mr. Porter decidiu ‘sair do esquema’, dispensou o aluno das provas formais de matemática, e o convidou para montar o jornal da escola. Esse aluno transformou-se depois num dos escritores americanos de cor mais famosos. Conta isso nas suas memórias”.

O tema de educação da afetividade – do coração, que implica envolvimento emotivo – também é brilhantemente desenvolvido na entrevista. “Ensinam aos professores que não temos nada a ver com as emoções e afetos dos alunos. É algo que não costuma entrar na equação educacional. Os bons professores estão atentos, são sensíveis às emoções do aluno. Para isso é preciso levar a sério as próprias emoções, estar resolvido.” E desde essa perspectiva afetiva, o educador facilita a reflexão: “O grande papel do professor é ser um promotor da reflexão. Muitas vezes coloca um terceiro elemento no cenário, que facilita tudo isso. É o papel de um poema, de uma história, onde não se trata de interpretar, mas funciona como um gatilho evocador da voz interior que provoca a reflexão”. Assistir esse trecho brindou-me uma alegria especial: é por isso que as humanidades –a literatura, o cinema- funcionam para educar! Não porque são fábulas que nos dizem como há que fazer as coisas, mas porque disparam a reflexão, dão voz à interioridade, fazem com que a ficha caia. São o terceiro elemento na conversa, obrigam a pensar.

Uma vez e outra, o recado principal –ensinamos aquilo que somos- aparece, como variações sobre o mesmo tema numa composição de Mozart. “Dizem que é preciso ensinar sem envolver-se, de uma prudente distância. Na verdade, ensinar e aprender são puro envolvimento. Todos os grandes sábios se envolviam com paixão, por completo, naquilo que faziam. Não é uma questão apenas de cabeça, mas de coração”. Uma história ilustrativa: “Regressei para um evento ao College onde me formei, há 40 anos. Lá encontrei três grandes professores, já anciãos, que marcaram minha educação. Lembro que alguém me perguntou qual eram as matérias que tinha cursado com eles, e reparei que não me lembrava do título nem do programa. Eu somente recordava da admiração que me causaram e que eu queria ser como eles quando crescesse”.

As consequências são claras: tudo depende da integridade e da identidade de quem está ensinando. Identidade é saber quem sou, o que me forma, todas as experiências vitais. Integridade é estar lá por completo, não ter uma dupla vida –como pessoa e como professor- porque isso é uma bomba relógio. Integridade é viver uma das frases preferidas do Professor Palmer: “Divided no More!”. Acodem à memória os versos de Fernando Pessoa que sintetizam este mesmo pensamento de modo admirável: “A vida é terra/ e vive-la é lodo/ Tudo é maneira, diferença ou modo/ Em tudo quanto faças, sé só tu/ Em tudo quanto faças, sé tu todo“. Ai está a identidade (sé só tu), e a integridade (sé tu todo) em versão poética.

Ensinamos o que somos, o que sai de dentro de nós. A ação educacional é espelho da alma. Se o professor não se conhece, dificilmente conseguirá conhecer os outros, nem ajuda-los. Ficará no externo, nas técnicas, nas avalições convencionais. Mas nunca chegará fundo. Tudo isto é uma questão puramente vocacional, sentir-se chamado a ser professor. “Mais do que fazer coisas certas, o importante é saber se faço aquilo ao qual estou chamado, se respeito a minha vocação. Do contrário, sempre existirá uma violência que acaba sendo transmitida para os estudantes. Quem não está feliz com o que faz, quem não ‘se encontra’ ensinando, não é bom guia. O professor não é um ator que representa um papel, separado da sua própria vida e valores”. Novamente o tema da objetividade: a consequência fatídica é que todo o empenho docente se debruça sobre conteúdos, curriculum, técnicas o que rende uma educação exterior, que não transforma o aluno. Quando falta o entusiasmo e o comprometimento –aspectos completamente subjetivos, do sujeito, no caso do professor- o aluno sim consegue avaliar essa deficiência. E aquilo não ‘gruda’ nele. Se a vida do professor está mal resolvida, não há como fomentar no aluno um verdadeiro compromisso de crescimento e maturidade.

A clássica discussão entre poder e autoridade é muito bem abordada. “O poder vem de fora, e utiliza recursos mensuráveis, punitivos, recompensas. Ai o professor converte-se num agente educativo, uma espécie de policial no canto da sala. Autoridade vem de dentro, da identidade e integridade do professor. Autoridade tem a mesma raiz de autoria, quer dizer, de quem assume a responsabilidade integral pelos seus atos, pelas suas obras; quem é criativo, e não apenas copia ou reproduz”. Vendo este trecho ocorreu-me: quem conduz o seu próprio destino, como se lê em latim no brasão Paulistano: ‘Non ducor, duco‘, isto é, ninguém me conduz, sou eu quem conduz.

Enveredar nesta revolução educacional implica contagiar outros deste espírito. É condição de sobrevivência, e de qualidade. A reflexão individual –imprescindível- deve ser complementada pela reflexão com os pares, porque existe o risco de ouvir somente o que queremos, de não poder compartilhar com ninguém. É preciso agregar pessoas para manter o que nos levou a todos a ensinar: o coração, a paixão por ensinar, a vocação docente. “Todos os que ensinam o fazem por uma questão vocacional, sentem-se chamados; e lá colocam o coração, pois não há outro modo de ensinar. Isso leva a um risco, porque a diferença de outras profissões, um professor se move num território que conecta o público com a vida privada. Somente assim é possível ensinar do coração”.

As dificuldades fazem parte desta renovação na coragem de ensinar: “A sociedade e o sistema educativo, valorizam o objetivo, e de algum modo desprezam o subjetivo pela natural dificuldade que supõe avaliar a subjetividade. Afinal, a vida é subjetiva, é do sujeito: o objetivo está sempre incarnado em alguém. Mas o tributo à objetividade leva a o desprezo pelo mundo interior e subjetivo. E realçamos o objetivo, em forma de programa, ou de técnica educativa. Daí que formemos médicos para consertar os corpos, mas incapazes de sarar o espírito; daí colocar notáveis em postos de CEO, mas incapazes de ser líderes; daí que haja professores que dominem técnicas pedagógicas, mas incapazes de conectar verdadeiramente com os seus alunos. Por isso, a desconfiança dos próprios estudantes e dos acadêmicos nas reformas interiores: para que mudar, se no fundo, ninguém liga para isso?”

Aqui reside –agora é reflexão da minha própria colheita- o grande desafio. Qualquer pessoa envolvida em educação que leia este livro, além de emocionar-se, concordará com a maior parte das teses, sentir-se-á inspirado. Mas pode ser que tudo não passe de um “foi bom enquanto durou”, ou um sonho “a modo de Alice no país das maravilhas”, se não se decide a colocar em prática o que aqui está. E colocar em prática implica dedicar tempo, fazer disto uma prioridade, talvez até investir recursos e, certamente, assumir que terá de ir na contramão da maioria das instituições que se denominam docentes, e que na sua essência são a perfeita antítese de tudo o que o livro propõe.

Alguém poderá contestar: “Tudo isso está muito bem. Mas as instituições não querem nem saber. Para que vou me complicar?” Na verdade não se trata tanto de transformar instituições –sempre despersonalizadas e objetivas, por motivos da sua própria estrutura- como de aprender a criar uma comunidade onde seja possível um diálogo de confiança, de intercambio aberto de opiniões e vivências –alegrias, frustrações, medos e receios, sucessos e limites- para falar de nós mesmos. Ao invés de gastar o tempo em intermináveis discussões sobre técnicas pedagógicas –ou reformas curriculares- melhor seria aplicar esse tempo para falar de nós mesmo. Afinal, do que falam os professores quando se encontram? Sempre do aluno problema, das dificuldades com a instituição, dos baixos salários (o que sempre foi e será assim). Nunca falam deles, e aqui está o maior perigo: perdemos a chance de nos ajudar mutuamente.

Este livro importantíssimo suscitará a necessidade de parar para pensar. Ou até de organizar uma reflexão conjunta com os colegas professores, fazer um retiro educacional. Eis outro perigo: Podem se fazer cursos de imersão pedagógica, mutirões e retiros, sim; mas se não se cria um recurso habitual para criar continuidade, viveremos de mutirões, ou melhor, das miragens e sonhos que deles se decorrem. A função de um retiro , reflexão mais funda, tem de ser criar recursos para reabastecer-se no dia a dia Um verdadeiro pit stop continuo. Um reabastecimento regular. Uma prioridade absoluta que garanta a sustentabilidade de uma decisão tomada no fundo da alma: A Coragem de Ensinar!

capa do livro The Courage to Teach

Parker J. Palmer: The Courage to Teach: Guide for Reflection and Renewal. Jossey-Bass. Wiley and sons Inc. S. Francisco, 2007. 180 pgs/ DVD 70 min.

 

www.pablogonzalezblasco.com.br


* Dr. Pablo Gonzalez Blasco é Médico e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002), Membro Fundador e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor de diversos livros, como “O Médico de Família, hoje”, “Medicina de Família & Cinema” e “Educação da Afetividade através do Cinema”. Mantém o site "Pablo Gonzalez Blasco - Educar no Humanismo", onde publica comentários de filmes atuais e de livros, e também ensaios sobre antropologia e perspectivas éticas do quotidiano, humanização e relacionamento, educação da afetividade e das emoções.

 

Fonte: www.pablogonzalezblasco.com.br

Publicado no Portal da Família em 30/09/2012

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