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O paradoxo da liberdade

Evandro Faustino *, glosando Alejandro Llano (A vida lograda)

Hoje em dia vivemos um déficit no exercício da liberdade. Vivemos a liberdade de forma limitada, porque não a entendemos em toda sua plenitude. Há nesse campo tesouros a descobrir, horizontes a discernir, facetas de brilho a contemplar dos quais nem sequer fazemos idéia. Somos míopes no que se refere a viver a liberdade, e as raízes dessa miopia se encontram no esquecimento da imagem humanista do homem.

Apesar de tudo, a liberdade continua exercendo sobre mim uma tremenda força de atração. Toda cultura ocidental é um hino a esse bem humano primordial, sem o qual qualquer pessoa honrada prefere a morte. Eu não desejaria ser “outro”, nem mesmo “outro melhor”, se essa presumível transformação fosse acontecer sem que minha vontade dela participasse. Não se pode ser feliz à força, e menos ainda inconscientemente.

O ideal de liberdade é inseparável do desejo de autenticidade, de ser eu mesmo. “Chegue a ser o que tu és” incitava Píndaro, falando aos nobres que aspiravam um modelo heróico de conduta, na Grécia clássica. E Pico de Mirandola no Renascimento dizia que liberdade e dignidade são inseparáveis. Esse é o mote, o lema que perpassa todos os fenômenos culturais que englobamos sob o nome de Humanismo. O humanismo não é outra coisa que a busca da realização de nosso próprio e inalienável modo de ser, buscando atingir sua plenitude, porque – ainda que esse modo de ser nos tenha sido dado por Deus – ele pode e deve ser completado por nós [1]. Kant reforçava essa idéia afirmando que dessa autenticidade autônoma depende toda a moralidade humana, e a reta atuação da pessoa na História Universal.

A liberdade é a auto-realização de mim mesmo. Em cada ato de liberdade, em toda decisão livre, estou eu mesmo, de modo inteiro e cabal. Aristóteles dizia que no ato do conhecimento “a alma é de certo modo todas as coisas”. De modo análogo podemos dizer que no ato da vontade livre a pessoa é toda ela. Quando decido algo eu me reassumo, me sintetizo, precisamente porque vivo esse ato com toda a intensidade de que sou capaz em cada momento. Nem todo conhecer é conhecer- me. Mas todo decidir é sempre decidir- me. A decisão livre me implica existencialmente de um modo mais profundo e global que o próprio conhecimento. Minha vontade me é mais própria que minha razão.

Até aqui chega o humanismo: em cada ato de liberdade eu sou por inteiro eu mesmo. Isso não significa que a decisão seja sempre necessariamente egoísta. Mas é certo que ao decidir algo, eu principalmente me decido, e ponho na minha decisão todo o peso – passado, presente e futuro – de meu ser, toda minha envergadura pessoal e social.

Mas esse enfoque humanista se quebrou nestes últimos tempos, por culpa de uma antropologia truncada, onde o individualismo, o materialismo e o relativismo ético grassam impunemente. A visão que se tem de homem é uma visão diminuída, que me dificulta compreender a decisão livre como um compromisso grandioso e universal. Sou então reduzido a ver a liberdade apenas como “liberdade negativa”, isto é, como uma permanente ausência de vínculos ou de compromissos. Fica sendo uma mera liberdade de... de tudo aquilo que me prende ao entorno cultural, social ou político.

No entanto, o melhor sentido de liberdade parece ser a chamada liberdade para... para a realização de projetos que me comprometam de maneira estável e que – antes mesmo de chegarem a níveis econômicos ou políticos – me vinculam a comunidades humanas nas quais eu vejo, não apenas a possibilidade de aumentar meus benefícios, meu poder ou influência, mas onde eu me dou conta da necessidade que muitas pessoas têm de ser cuidadas, de receber um tratamento diferenciado e digno. Coisa que nenhum planejamento estatal, nenhuma burocratização de forma alguma conseguirão sequer imaginar [2].

Mas ainda não chegamos ao mais profundo. O ignorado e definitivamente incitante, a fonte oculta que dá sentido à vida social e política é um terceiro sentido da liberdade, a que paradoxalmente poderíamos chamar de liberdade de mim mesmo. Esse mim mesmo, o “eu”, não é um lugar fechado, mas um vetor de projeção e de entrega. De certa forma, é um vazio que clama por seu preenchimento. E o paradoxo da liberdade consiste em que, para que a vida atinja realmente o cume de sua realização, é preciso fazer um esvaziamento de mim mesmo e uma abertura amorosa para os outros. Meu amor é meu fundamento, meu alicerce, dizia Santo Agostinho. Minha firmeza interior me vem dada, não por minhas experiências ou caprichos, dos quais na verdade preciso me libertar. O que me lastreia e me fundamenta na vida, e me traz desejos de crescer é meu amor pessoal, irreversível e definitivo. E a chave da autenticidade desse amor pessoal vem não apenas da capacidade de amar estavelmente outra pessoa mas, sobretudo da abertura para me deixar amar. Ao me deixar amar posso entender o que significa libertar-me de mim mesmo, porque então sei que o que tenho não é mais meu, mas de quem me ama. Amar equivale a por o próprio nas mãos de alguém querido, em quem confiamos plenamente. Eu me realizo muito além de mim mesmo. Está muito profunda a água que pode saciar a minha sede.

 

[1] - Deus deu a Adão a missão de cultivar o paraíso terrestre. Deus dá a cada um de nós a missão de cultivar nosso próprio jardim. Devemos participar assim da criação divina, da nossa própria criação, por desejo e mandado do próprio Deus.

[2] - Um exemplo entre mil: No século XVII a educação no Brasil era exercida por religiosos, principalmente jesuítas, que faziam esse papel voluntaria e livremente. Quando Pombal expulsou os jesuítas, e os substituiu por um sistema educativo estatal, o ensino brasileiro se tornou um caos. O mesmo se pode dizer da substituição dos hospitais religiosos pelos laicos, onde as funcionarias enfermeiras substituíram as freiras.


* Evandro Faustino é Mestre e Doutor em História pela USP, Mestre em Direção de Centros Educativos pela Universidade Complutense de Madrid, Coordenador do Curso de Ciências Humanas do IICS, Autor de diversos livros e artigos sobre educação e Consultor do SESI para elaboração dos referenciais curriculares da rede escolar SESI-SP.

Fonte: Centro Educativo Volare -  www.volare.org.br 

Blog Educar é ajudar a crescer  evandrofaustino.blogspot.com.br.

Publicado no Portal da Família em 08/11/2013

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