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MANIFESTO DA LÍNGUA BRASILEIRA

por Wanderley Wang

Não, não se trata aqui de chamar futebol de ludopédio. Nem de querer o ensino do Tupi-guarani em nossas escolas. E nem o de querer proibir o uso de palavras estrangeiras por aqui.

Este é um manifesto de pessoas que passaram a vida toda convivendo com as exceções e contradições da nossa Língua Portuguesa, e que acham que já está mais do que na hora de uma reforma ortográfica geral. A situação parece inocente, mas é grave.

Professores e pais com crianças na fase de alfabetização conhecem bem as dificuldades em se tentar ensinar nossa língua. Muitos são os motivos. Já repararam nas contradições de nossa língua ?

Por exemplo, por que palavras estrangeiras como "software", "hardware", "Kelvin", "kaiser" e "kart" foram incorporadas ao nosso vocabulário e incluídas em nossos dicionários sem terem sido aportuguesadas ? A resposta é simples: a língua portuguesa é uma língua viva, que pode evoluir, diferentemente do Latim que é uma língua morta.

Mas a pergunta que fica é: por que as letras "k", "w" e "y" continuam excluídas do nosso alfabeto ? Podemos incluir as palavras sem incluir as letras que compõem essas palavras ? Se temos letras similares mas não foram utilizadas, então essas três letras não podem ser suprimidas. Nas escolas ensinam o alfabeto sem essas letras, em propagandas e livros coerentemente aparece o alfabeto oficial, mas em diversos brinquedos e objetos, geralmente importados, aparece o alfabeto completo. Dizemos então que estão "errados" ?

É difícil para quem se chama, por exemplo, "Wanderley", "Washington", "Kátia" ou "Yuri", ou quem quer mostrar uma placa de trânsito onde está escrito "80 km/h", explicar para os filhos que essas letras não existem aqui. Numa grande contradição, nosso órgão nacional de trânsito emite chapas de automóveis com essas letras, do tipo "KWY-1234". Só que os professores não ensinam as crianças à "desenharem" ou falarem essas letras, e depois queremos que elas as escrevam em certas palavras. Quem preencherá essa lacuna no ensino ? Não está mais do que na hora de re-incorporarmos essas letras ?

Alguém já ensinou o "ba, be, bi, bo, bu", o "da, de, di , do, du" e o "fa, fe, fi, fo, fu" ?

Na hora do "ca, ce, ci, co, cu" e do "ga, ge, gi, go, gu" o bicho pega. Algumas professoras chegam a ensinar o "ca, que, qui, co, cu", ou apenas o "ca, co, cu" para contornar o problema. Ou seja, desde crianças somos obrigados a "engolir" o fato sem questionar.

Quando chega a letra "q" a gente pula ? Não existe o "qa", "qe", "qi", "qo", "qu". Devemos então ensinar o "qua", "que", "qui", "quo" e o ....como diríamos "quu" ???? E por que "qua", na palavra "quatro" se pronuncia "cuatro", e "que" em "queijo" não se pronuncia "cueijo" ?

Que dizer do "ç" (cedilhado) ? Cedilhado é o "c" com cedilha. O dicionário nos diz: "Cedilha, s.f. Sinal gráfico que em certos casos se satopõe ao c, para indicar que tem o valor de s inicial. (Diminutivo de z em castelhano: zedilla, de que nos veio cedilha)".
Se satopõe ao c ??? Bem, acho que todos entenderam. Salvo engano, só nossa língua e o francês têm esse "c" com "acento". É certo que muitas línguas têm sas particularidades, mas...precisavamos disso ? Não se poderia escrever "cassar" ao invés de "caçar", "mossa" ao invés de "moça", "dentussa" ao invés de "dentuça" ? O som é sutilmente diferente ? Eu não percebo isso, e você ? E se for, qual o problema de se deixar com o mesmo som ?

E sobre o "s" e "z" ? Não se poderia escrever "cazar", "cazamento", "Denize", da mesma forma que se escreve "vazar", "vazamento" ou "deslize" ? Se tem som de "z" deveria se escrever com "z". O "ça", "ce", "ço" deveriam ser substituídos por "sa", "se" e "so", respectivamente. Então, a palavra "moça" deveria ser escrita "mosa", compatível com o ensino do "sa, se, si, so, su".

E por que "viagem" se escreve com "g", e "viajar" se escreve com "j" ? A "jente", digo, a gente fica sem jeito de explicar. É ruim como giló. Ou será jiló ? "Viagem" e "gelo" deveriam ser "viajem" e "jelo". "Guepardo" deveria ser escrito "gepardo".

Temos também o "ch". Mesmo que "cha, che, chi, cho, chu" seja igual a "xa, xe, xi, xo, xu". Por que algumas palavras foram aportuguesadas, e outras não ? Não teríamos mais dúvidas entre escrever "xuxú" ou "chuchú". Bem, ainda não sei como explicar (podia ser "esplicar") ao meu filho por que se lê "taxi" e não "táchi".

E aquela regra de que "m" só pode vir antes de "b" ou "p", como em "tambor" e "tampa", enquanto que em "cantor" e "manca" se usa o "n". Parece coisa de quem não tinha nada o que fazer e resolveu inventar uma regra. Alguém sabe pra que ela serve além de ser questão de prova para ver se você sabe realmente escrever ? Qual o problema em se escrever "tanbor" ou "tanpa" ? Verifique se você tem uma pronúncia e uma audição acuradas, percebendo a sutil diferença entre falar "taMbor" e "taNbor", ou entre "caNtor" e "caMtor".

Já ouviu falar no Esperanto, uma língua artificial muito falada por aí ? O Esperanto só tem regras, não tem nenhuma exceção. Zero exceções. Por isso, seu aprendizado é extremamente fácil. A conclusão é simples: quanto menos exceções e mais lógica, mais fácil de aprender. E justo no nosso país, com altíssimas taxas de analfabetismo, só é considerado alfabetizado quem "decorou" , além das regras, um monte de exceções sem sentido. "O Fulano é analfabeto porque escreveu com z ao invés de s". Imaginem quanto tempo de ensino é desperdiçado, e quantas repetências escolares acontecem por causa disso. Quem coloca "N" onde seria "M", "Z" onde seria "S" é de fato analfabeto ?

Tudo bem, Esperanto é Esperanto e Português é Português, existem línguas ainda mais difíceis e temos nossa história lingüística, mas...precisávamos exagerar tanto em termos de exceções e "decorebas" ? Não vamos conseguir acabar com todas, mas podemos simplificar.

Dizem que a língua influencia nosso modo de pensar [1], ao mesmo tempo em que reflete nossa cultura. Então, já repararam que nossas leis (leis de trânsito, código penal, sistema tributário, código civil, medidas provisórias e tantas mais) são extremamente complexas e cheias de contradições, lacunas e remendos, tal qual nossa língua ? Existira aí uma relação de causa e efeito, do tipo "porque aprendemos a pensar e a falar assim, nossas idéias também são assim", ou ambas (língua e leis) são apenas vítimas de nossa idiossincrasia ?

Claro que tudo isso implica em uma reforma radical de nossa língua. Ora, nós já tivemos reformas gramaticais antes. "Alguém", por exemplo, tirou a letra "w" do nosso alfabeto. Basta ver os livros e jornais escritos há algumas décadas atrás. Se começarmos agora, daqui há uns 20 ou 30 anos, quando os filhos de nossos filhos estiverem sendo alfabetizados, ninguém estranhará mais as mudanças. Podem crer que nossos netos irão agradecer-nos.

Se nossa casa e nossos armários estão em desordem, não deveríamos arrumar tudo e jogar no lixo o que não nos serve mais, para não corrermos o risco de a bagunça aumentar cada vez mais e também para ficarmos mais eficientes ? Quem disse que não o podemos fazer e que conviver com isso é nosso destino ?

Temos muitos livros já escritos ? Qual o problema ? Livros didáticos, infelizmente, não duram muito. Quanto aos outros livros...bem, seriam gerados novos empregos nas editoras, novas edições desses livros...o comércio editorial ficaria aquecido.

Na verdade, há até outro aspecto. Hoje seria o melhor momento para uma revolução gramatical como essa. Estamos em plena expansão da mídia eletrônica, dos e-books, e da transcrição de obras antigas para dentro da internet. Quem usa algum software editor de textos em computador sabe que bastaria usar o comando de "substituir" para trocar uma palavra por outra. Tudo em um piscar de olhos.

Ficaríamos diferentes dos outros países de língua portuguesa, como Portugal, Angola e Moçambique ? E daí ? Já não temos diferenças em termos de pronúncia e vocabulário ? E já não somos diferentes, e minoria em termos de idioma, frente aos países de língua espanhola ou inglesa ? Nossos irmãos de língua também não poderiam modernizar-se ?

Portugal não aceitaria desvirtuarmos a bela "Flor do Lácio" ?
Então estaria na hora de nós criarmos a Nossa Língua Brasileira. Mais simples, mais coerente, mais fácil, com mais regras do que exceções e didaticamente mais correta.

Temos outras prioridades ? Sem dúvida que sim. Mas quem seria incumbido dessa reforma seriam apenas nossos lingüistas, nossos filólogos, os membros da Academia Brasileira de Letras, e pessoas assim, que, se guiadas pelo "bom senso" e apoiadas por uma aclamação da sociedade teriam coragem de fazê-lo.

Dessa forma, começariamos o primeiro ano do primeiro século do novo milênio com o pé direito.




Um bem humorado desabafo de um pai às voltas com a árdua tarefa de explicar a Língua Portuguesa aos filhos em idade de alfabetização.


* Wanderley Wang – Trabalha com Tecnologia da Informação há mais de 25 anos, é formado em Licenciatura de Matemática pela USP, e é Mestrando em Engenharia da Computação - Engenharia de Software. É pai de 2 filhos.

[1] Nos anos 30 o lingüista americano Benjamin Whorf elaborou a teoria de que o idioma condiciona o raciocínio, e que o ser humano só é capaz de formular pensamentos a partir de elementos que possuam correspondência nas palavras.

Publicado no Portal da Família em Outubro/2002

 

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