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André Gonçalves Fernandes
Coluna "Lanterna na Proa"

Eutanásia e Consentimento

André Gonçalves Fernandes

O direito é moldado, com efeito, para garantir um mínimo de responsabilidade ética para a sua realização, assegurando a harmonia social. Essa responsabilidade deve evitar, por exemplo, que o direito de aceitar o consentimento do paciente, como se fosse apenas uma variável a mais sujeita a uma avaliação moral, fosse determinante para direcionar todas as demandas aí envolvidas.

A compaixão moral permissiva tem de dar lugar a uma garantia jurídica responsável. Obviamente se o suposto direito de exigir a morte fosse apenas uma solução última e desesperada, frustradas as possibilidades médicas de solução, o debate sobre as garantias essenciais tornar-se-ia central para o argumento aqui exposto.

Pode-se objetar que descriminalizar a conduta de terceiros não implicaria em legalizar no sentido próprio do termo. Tal distinção dogmático-jurídica não parece não ter muito significado prático, como a referência à objeção de consciência tem nos casos de aborto. Não se admira que este fator esteja presente nas recentes tentativas de abordagem, independentemente de qualquer apelo à transcendência, do futuro da natureza humana.

Isso se dá, por exemplo, na visão de Habermas, para quem, a sujeição da tutela daquilo que denomina pré-vida pessoal, a fins terapêuticos produziria uma perda de sensibilidade da nossa visão de natureza humana, a ponto de que um incentivo de tal prática abriria os caminhos para a eugenia liberal.

O paralelismo entre o direito e a saúde, presente já na antiguidade grega, vai mais além de sua condição de saberes práticos. Inseparável do direito é a exigência de simetria, derivada da radical exigência de tratar o outro como um ser igual. Não muito distinto é o ponto de vista moral do trato não instrumentalizado de uma segunda pessoa, perceptível na lógica da cura.

Na mentalidade eugenésica, existe uma ruptura da aludida simetria, quando os pais decidem de acordo com suas próprias (e, não raro, inconfessadas) preferências, como se o doente fosse uma coisa. A liberdade é concebida como algo natural indisponível, na qual a pessoa cria um liame com sua própria origem, de modo que, a partir de um dado momento, não dependa mais de outra.

Se o foco recai sobre a autodeterminação do enfermo, a questão da simetria seria desnecessária, ao se apresentar a eutanásia como um ato de renúncia pessoal. Surgiria um dilema entre a liberdade pessoal do doente e a imposição heterônoma de critérios despersonalizados. Novamente, o juízo moral se mostrará mais propício a assumir um enfoque de uma atitude juridicamente responsável.

O direito se vê na obrigação de resgatar a visibilidade do outro em um plano bidimensional. Como a liberdade se insere num âmbito essencial de solidariedade, na verdade, assistimos a um choque de duas liberdades. A liberdade do profissional médico, com a salvaguarda do exercício do direito de objeção de consciência. Mas ele não é o único protagonista na realidade posta.

O paciente também participa e o direito não pode reduzir a resolução do problema ético apenas garantindo a segurança do consentimento do enfermo que solicita a eutanásia, como se tudo se resumisse a tal ato. Se se amplia o espectro de visibilidade, emerge a responsabilidade jurídica de garantir a vontade de outros doentes que, em condições similares do exercício de sua liberdade, não a solicitaram.

No choque entre o exercício de um presumido direito alheio de morrer com um induvidoso direito à vida do paciente, reforça-se a importância de se assegurar juridicamente os meios para o exercício de uma lógica da cura, muito mais compatível com a citada simetria do que a almejada capacidade de dispor sobre a vida de outrem.

Não há dúvida de que uma atitude de abertura à transcendência tem privilegiado os argumentos para manter o primado da dignidade como fundamento da autonomia da vontade do paciente. Mas isso só serve para destacar o quanto o problema atual da eutanásia reside no fracasso das tentativas de estabelecê-lo para além deste ponto de apoio.

médica e eutanásia

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ANDRE GONÇALVES FERNANDES, Post-Ph.D. Juiz de Direito e Professor-Pesquisador. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre, Doutor e Pós-Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito, titular de entrância final em matéria cível e familiar, com ingresso na carreira aos 23 anos de idade. Pesquisador do grupo PAIDEIA-UNICAMP (linha: ética, política e educação). Professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação (IFE). Juiz instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM). Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo - Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas e da Academia Iberoamericana de Derecho de la Familia y de las Personas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Conferencista e autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Membro Honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras.

E-mail: agfernandes@tjsp.jus.br

Publicado no Portal da Família em 15/11/2014

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