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Medo de ter filhos

Johannes B. Torelló


A gratuidade do amor matrimonial está condicionada pela assunção do risco de gerar e educar filhos. O êxtase a dois é pura fantasia romântica, pois o nós que o amor fundamenta não é uma ilha de felicidade no meio da História e da sociedade, mas uma abertura para o ser, uma afirmação alegre e criadora de vida humana real.

O ensimesmar-se do casal, assim como qualquer enclausurar-se individual no cascão do egocentrismo, desemboca no tédio, na asfixia, na neurose. O filho diretamente desejado, ou pelo menos generosamente aceito, quebra o círculo diabólico do instante unitivo considerado como fim em si mesmo e abre-se para a imprevisível história inerente à essência do humano (Jeannière).

O amor, se não é instrumentalizado a serviço do "momento extático", mas, pelo contrário, se insere no devir existencial, traz consigo e exige, a partir da íntima profundidade da relação bissexual, a aceitação do filho como um risco. Risco não significa aqui a ameaça de uma aventura amorosa clandestina, nem o espantalho do prazer físico autonomizado, mas sim a audácia de um ato cujos efeitos não são o resultado nem do simples mecanismo biológico, nem da mera decisão voluntária.

Mesmo enquanto pura possibilidade, o filho surge como sujeito, não como uma finalidade exclusiva nem como efeito acidental da união amorosa. É sujeito e, enquanto tal, absolutamente imprevisível, incalculável e o único capaz, portanto, de garantir a gratuidade ilimitada, a continuidade e a irrevogabilidade do devotamento de amor.

O homem atual sente medo diante do filho, porque treme como varas verdes perante a incógnita historicidade da vida e, em especial, da vida em comum. Isto deve-se ao fato de ter sido instalado, desde a infância, num sistema de segurança que transforma os sujeitos pouco a pouco em rígidos objetos, e tende a eliminar imediatamente e sem nenhuma consideração tudo o que for inesperado, jocoso e criador, concebido como obstáculo à planificada "ordem higiênica". Este tão difundido medo dos filhos enraíza-se no húmus sempre menos vital da entorpecida estrutura de um mundo massivamente tecnificado. Daí a fragilidade e a friabilidade do amor matrimonial no nosso tempo.

Os ingênuos trovadores do "amor extático" e os psicólogos de telenovela, embriagados de hedonismo, pretendem emancipar a comunidade amorosa, à margem da função geradora. Não percebem, no seu zelo anticonceptivo, a inseparável união dos dois riscos que caracterizam a vida humana; o risco do amor e o risco do filho. E, em cima das andas do senso de responsabilidade, a vertigem torna-se ainda mais mórbida, pois aqui vertem a sua peçonha modelos educativos avantajados, mas notavelmente açucarados.

Segundo esses modelos, o filho exigiria dos pais sacrifícios imensos e, sobretudo, inúmeros e penosíssimos cuidados, em se querendo evitar qualquer gênero de frustração - a tão decantada fonte de todas as desventuras. Em tais condições de extrema periculosidade e quase sobrehumana carga de solicitudes, pode um casal, "com a mão na consciência", responsabilizar-se, quando muito, por um ou dois filhos: um número superior de descendentes levaria inexoravelmente ao esgotamento dos pais e à infelicidade da prole. São conseqüências que fazem tremer até à medula. Vejamos o seu fundamento.

O congresso americano de psiquiatria, celebrado em Boston já no ano de 1968, documentou exaustivamente que as crianças da nossa sociedade, além de que, por via de regra, não sofrem de frustrações, sofrem, muito pelo.contrário, de excessiva "gratificação", termo do jargão psicológico que poderíamos traduzir por "mimo" ou "condescendência". "A nossa sociedade é, ao mesmo tempo, fautora de bem-estar e permissiva, de modo que priva as crianças, por meio de incessantes gratificações, da experiência da realidade. Das crianças não se espera trabalho e ajuda, poupam-se-lhes as fadigas diárias e tira-se-lhes a possibilidade de prestarem serviços que lhes permitiriam arrostar a concorrência e aprender a colaborar com os outros. O desenvolvimento da sua natural curiosidade, agressividade e disposição para o diálogo não se pode verificar se a criança vê satisfeitos desde sempre todos os seus desejos" (Settlage), o que, forçosa e felizmente, não é possível nas famílias numerosas.

Pode-se afirmar, sob este ponto de vista, e por mais paradoxal que pareça, que a vantagem de que gozam os filhos de família numerosa consiste precisamente no fato de não poderem ser tão bem cuidados como o é o filho único, que mais tarde, não raramente, passa a ser um rebelde ou um fraco.

A superstição científica, típica do nosso tempo (Jaspers), intoxica a vida de família, em que, entre a psicologia "pop" e a rigidez do balanço econômico, o medo ao filho cresce desmensuradamente. Por outro lado, o amor do casal, exaltado e, precisamente por isso, sempre insatisfeito, dá lugar ao aparecimento de uns pais - e mães sobretudo - que consideram e cuidam a prole - mínima, exatamente calculada - como um consolo, isto é, como propriedade.

Mimo e condescendência com os filhos significam sempre mimo e condescendência para consigo, e os momentos fortes de rigor se destinam quase exclusivamente à promoção de meninos-prodígio, revelando a egocêntrica ambição dos pais. Uma paternidade generosa é, pelo contrário, sinal da profundidade e amplitude do amor e do respeito confiados ao sujeito-filho, que não é para mim, mas para si, para o mundo e para Deus.

Uma educação materna egotista produz a chamada "vinculação à mãe" (a "Mutterbindung" dos alemães), que, por sua vez, é considerada como uma das causas da atual "crise do varão" (Bedriarik); é também a origem da vaga de crianças egocêntricas que, mais tarde, farão do prazer, da comodidade, do não comprometer-se ou da consciência mais subjetiva um ídolo cruel e se negarão a ter filhos seus.

Os urbanistas, adoradores do bem-estar mais material, ignoram amiúde os filhos ou, conceituando-os como parte integrante e ineludível da sociedade de consumo, calculam-nos reduzindo-os a um mínimo "tolerável". Daí a "irrealidade" das nossas cidades. "Por que será que as crianças das nossas cidades não são tratadas como crianças, mas como bonecos ou como adultos em miniatura, rodeados de adultos infantilizados a quem as experiências citadinas anteriores viciaram de tal modo que já não sabem de que meio ambiente necessita um ser humano até aos seis e catorze anos, para não se converter mais tarde num mendigo de rendas e de pensões?" (Mitscherlich).

Nas cidades inumanamente quadriculadas pelas mais duras leis econômicas, a ternura já não conta para nada; abandona-se o lar e compram-se automóveis para fugir dele. Não há espaço para as crianças! Os pais de família numerosa são heróis, ou milionários, ou doidos; não há outra alternativa.

Mas é precisamente a sociedade do bem-estar que, por causa da mencionada cobiça pessoal em que se funda, menos famílias numerosas conta. Aos americanos, não lhes falta vontade de prescrever anticoncepcionais ao mundo dos pobres, como condição prévia para se dignarem a ajudá-los no seu desenvolvimento; mas a venda mais abundante desses produtos verifica-se precisamente entre as famílias super-alimentadas dos Estados Unidos. E, como as crianças, graças aos progressos da Química, já não ameaçam a estabilidade dos orçamentos familiares, podem-se vender as zonas verdes a preços mais altos, em vez de se destinarem a jardins e parques recreativos. Os poucos jardins que se salvaram estão cada vez mais silenciosos: dormitam neles massas de anciãos, e os cães - característico e histérico sucedâneo das crianças - passeiam e brincam por eles, devidamente "agarrados pela coleira"...

A imagem da mãe sofre hoje as arremetidas mais exacerbadas por parte dos que vêem nela um mito; a "última vaca sagrada" da nossa cultura ocidental, ou o obstáculo fundamental à emancipação da mulher, escravizada pelo tabu do amor materno. Os filhos dificultam, na opinião deles, o brilhante processo de libertação da mulher contemporânea, espiritualmente já emancipada. De fato, a educação dos filhos, isto é, o esforço para oferecer ao mundo homens sãos, retos, autônomos, ajuizados, cultos, responsáveis, dotados de senso comunitário e capazes de amar, constitui uma profissão que ocupa o dia inteiro, que exige da mulher um decidido compromisso, que não se compadece com nenhuma nostalgia de outras profissões.

Dos deveres de mãe, tomo de qualquer outro dever, a mulher só se sente escrava na medida em que neles não se empenha consciente e voluntariamente. O que conduz à plenitude e à satisfação não é a atividade, mas sim o amor que lhe votamos.

Observa com justeza W. Metzger que a vida profissional da mulher-mãe tem três fases: "A primeira, de formação para a profissão escolhida e começo do seu exercício; a segunda, de entrada na profissão de mãe; e, finalmente, em sendo já bastante crescidos os filhos, o retorno à primeira ou a entrada numa nova profissão. Esta mudança, muitas vezes difícil, por volta dos quarenta anos, é comum às mães e a outros profissionais não pouco numerosos, tais como os mineiros, os marinheiros, os oficiais do exército, os desportistas e os bailarinos. Mas as mães têm, em relação aos seus companheiros de vicissitude, a vantagem indubitável de possuírem a preparação necessária para a sua nova fase profissional". De tudo isto deviam dar tento as mulheres que se casam, para não oferecerem depois aos filhos "sacrifício" e "angústia", em vez de dedicação livre e amorosa.

Por muito que pese aos pesquisadores do comportamento humano, obcecados com os modelos do mundo animal, não foi a estrutura oficial que declarou "obrigatório" o amor de mãe: é a própria criança que não pode prescindir dele. Renê Spitz, psiquiatra infantil, demonstrou irrefutavelmente que não há cuidados materiais capazes de substituir o amor materno, seja qual for o alvitre do filósofo Marcuse, mestre de especulações futurológicas.

Fala-se aqui do amor materno, verdadeiramente humano, que não é desassossego constante e desalentador, nem esfalfamento adocicado que afunda o seu "tesouro" na angústia (a "Affenliebe", o amor simiesco de que falam os psicólogos alemães), mas sim a dedicação que estimula a audácia de um viver independente e generoso. As crianças que cresceram no seio de famílias numerosas mostram quase sempre vitalidade, presteza, espírito de iniciativa, energia, compreensão e abnegação, qualidades que raramente chega a desenvolver a pedagogia "científica": são gente que mete ombros à vida, esteios da comunidade.

Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á e negará a existência a um sem fim de seres possíveis. Ninguém acusará essa gente mais do que prudente, que não põe em perigo a sua reputação: "são homens honrados", como diria o Marco Antônio de Shakespeare. Mastigam palavras graves: consciência, responsabilidade, sensatez que triunfa da biologia cega, pôr cobro à bárbara explosão demográfica, etc. Não querem vulgarizar a vida. São "pessoas honradas". O problema da vida foi reduzido pelos alquimistas da nova moral a uma questão de método ou, quando muito, a um theologumenon - princípio teológico - que já não deveria afligir ninguém. Não há dúvida: "são pessoas honradas".

Se tal fosse possível, o filho não nascido deveria congratular-se com os seus pais por eles poderem colher abundantes êxitos profissionais, por viverem confortavelmente, por terem carros, casa de campo, toda a espécie de eletrodomésticos, cadernetas de poupança repletas e por poderem viajar todos os anos para países estrangeiros..., e tudo pela simples razão de que ele ficou no reino do nada.

São "pessoas honradas", que mimam os poucos filhos que o orçamento familiar permitiu que aparecessem neste mundo, em que experimentam penas e alegrias de modo freneticamente egocêntrico. Só o não nascido, que não experimentará nem gozo nem pena, poderia ter libertado a enfezada família do seu egoísmo neurótico ..., mas trata-se de uma família oficialmente honrada.

O sexo idolatrado e emancipado - não a inteligência nem a vontade - festeja a sua vitória, e o "amor extático-, sem "fardos" nem temores, converte-se em prazer duradouro que a si se define como "realização de si mesmo"! Afogando-se no abismo do não-ser as crianças conscienciosamente evitadas, permite-se a "dolce vita" a uns pais perfeitamente agasalhados na sua intocável "honorabilidade".

Dando de mão ao patético, que, não obstante, exprime um aspecto indubitavelmente trágico deste tema, se o medo dos filhos continuar a aumentar e o amor do casal a espiritar-se e a mitificar-se cada vez mais, bem podemos imaginar o fim do gênero humano como uma apoteose orgíaca, os esponsais de Eros e Thánatos *, enquanto um pequeno número de moralistas alienados continuará discutindo sutilmente o conceito de "natureza".

Esta impenetrável mas sempre significativa "natureza" há de se impor, e é de esperar que um dia se levantem homens e mulheres que queiram e consigam construir uma sociedade a serviço da vida, em que a cruz - e não o prazer furioso - seja o lugar preciso do amor, porque o pecado é uma realidade, e o Menino do nosso Natal não conhece outra vitória senão a vitória da cruz.


As canções de ninar natalinas enchem-nos de ternura o lar uma vez por ano, quando, recolhidos em torno do Menino, festejamos o Amor encarnado, puríssimo e generosíssimo, sem angústias nem temores. Só elas podem ofertar ao mundo febricitante a mansidão e a serenidade de que necessita urgentemente.


Johannes B. Torelló, no livro Psicologia aberta, Tradução de Alípio Maia de Castro, Editora Quadrante, São Paulo, 1987.

Johannes B. Torelló nasceu em Barcelona, em 1920. Formou-se em Medicina e doutorou-se em psiquiatria pela Universidade de Madrid. Doutorou-se em Teologia, em Roma, e foi professor de Psicologia na Escola Superior do Serviço Social de Palermo.

(*) Divindades da mitologia grega, respectivamente deus do amor deusa da morte.

 

 

 

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