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Coluna "Por dentro da dança"
Um apólogo
(ou o rei continua nu?)

Eliana Caminada
caminada@iis.com.br


Este artigo foi escrito para o jornal A Notícia, de Santa Catarina, por ocasião do 17º Festival de Dança de Joinville realizado em 1999, muito antes, portanto, da excelente série "Contos da meia-noite" levados pela TVE e TV Cultura. No caso de "O Apólogo", um dos contos selecionados, as emissoras nos brindaram - e a Machado - com o talento e o brilho pessoal da grande atriz Marília Pêra.

Lamentavelmente, o que fazia sentido naquele momento, como já fizera quando Machado de Assis escreveu esta obra-prima, permanece inalterado; nem uma linha foi mudada. Temo que, pelo total desconhecimento e falta de respeito à dança, situações como a descrita se eternizem, contribuindo para o enterro da verdadeira dança cênica, da dança a que podemos chamar Arte.

Aliás, será que a arte ainda está viva? Respostas para essa bailarina.

Era assim o artigo:

"Relendo Machado de Assis, que mestre maior não existe, abri o volume dois de sua obra completa, na página com o mesmo título deste artigo. Não por acaso eu o selecionara. O texto, que envolve uma agulha, uma linha e um alfinete, me lembrou, de imediato, inúmeras situações conhecidas. Já no fim do conto a linha pergunta à agulha:

- Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá? Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: - Anda, aprende tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar a vida... Fazes como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam fico. E Machado conclui: Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!"

Suponho que o mesmo ele teria dito a muita agulha dançarina, sempre a abrir caminho para linhas oportunistas. E é por isso muitos profissionais se alfinetam; para que sair de onde estão se ao final da história resta-lhes o insignificante papel de coadjuvante de sua própria história?

É verdade que existem agulhas e agulhas: há as finíssimas, de fundo estreito, só servem para linhas requintadas; há as rústicas, de crochê, de tricô, de tapeçaria, aceitam até linha do tipo barbante, são ótimas para linhas de pura lã. E há as agulhas péssimas, tortas, enferrujadas, grosseiras; pelos seus fundos passam até mesmo fio dental de má qualidade. Não servem para perfurar nem brim, muito menos seda, tule ou gaze chiffon, mas as linhas do poder, as que menos costuram, dão-se às mil maravilhas com elas.

À custa do caminho que essas agulhas, mal ou bem, abrem, linhas politicamente habilidosas integram comissões, mudam a grafia internacionalmente adotada da palavra ballet num país de estrangeirismos inaceitáveis, distribuem prêmios, escrevem livros bancados com dinheiro público, assinam manuais que deseducam, distorcem a história, programam dança pelas tevês sem qualquer critério (adoram ilustrar a dança acadêmica com o que de pior existe, uma vez que não entendem nada do assunto), forjam gênios, enfim, exercem uma atividade de dar inveja até às poucas agulhas que, sabe-se lá como, conseguem acompanhar o traje da baronesa.

Machado de Assis só não falou dos tecidos. Quem sabe por respeito à fábula "O alfaiate e o rei". Para os que não a conhecem, esse rei encomendou um costume aos mais famosos "alfaiates" da época. Percebendo que o rei nada entendia de coisa alguma, muito menos de alta costura, os espertalhões decretaram: "Só os inteligentes conseguem enxergar a roupa nova do rei, uma verdadeira obra de arte". E assim, fingindo costurar um traje com agulhas, linhas e tecidos que não existiam fizeram o tal rei sair pelado.

Na fábula a ingenuidade e a sinceridade de uma criança aponta a verdade da nudez real. Hoje, quando tantas agulhas, linhas, alfinetes e tecidos sequer existem, são inventados, ainda que lamentavelmente visíveis, quem terá coragem de gritar que muitos teatrólogos e atores investidos de um súbito conhecimento de dança, coreógrafos da mente, analistas neuroniais, curadores, doutores, críticos, performers da nova era estão nus?

Eu, pessoalmente, não tenho vocação para alfinete; amo o ballet de forma muito visceral para ficar, filosoficamente, contemplando seu enterro, programado por linhas mal intencionadas, auxiliadas por agulhas idiotas. Também nunca consegui ser linha de espécie alguma. Linhas precisam conviver com o Poder. Eis que sou absolutamente incapaz de transitar com poderosos. Mas, como apesar de tudo, me sinto muito de bem com a vida, gostaria de registrar o nome de um grande incentivador da dança, de todas as danças, inclusive ballet, sempre presente em seu programa na TVE: Sérgio Britto. Sérgio até pode ser considerado como linha de nylon, inabalável, definitiva, segura; mas, certamente, sua atuação como agulha, sua generosidade para abrir caminhos para companheiros de todas as áreas artísticas pode ser bem avaliado, todas as semanas em "Arte com Sérgio Britto".



Eliana Caminada é Orientadora e consultora, escreveu vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto "Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação" e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal de Munique".


 

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