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Filme A menina que roubava livros: um amor forte como a morte


Pablo Gonzalez Blasco *

The Book Thief. Diretor: Brian Percival. Sophie Nélisse, Geoffrey Rush, Emily Watson, Nico Liersch, Ben Schnetzer. 131 min. (2013)

O título me entusiasmou. Não pelo ato de roubar –como se verá, a menina apenas empresta os livros- mas pelo objeto do furto. Em tempos onde a corrupção trafega solta, e criam-se nomes pomposos para disfarçar o que é roubo descarado, fazer dos livros objeto do desejo é, no mínimo, um ponto positivo. As pessoas vão atrás do dinheiro, do poder, da fama. A garota arrisca a pele por conta dos livros.

A protagonista é Liesel, filha de uma mulher perseguida pelo governo alemão durante a segunda guerra. O serviço social germânico, sempre eficiente, confia a garota a um casal sem filhos: Emily Watson e um soberbo Geoffrey Rush, que melhora sua performance a cada filme. Essa é a pista de decolagem para um filme que é um belíssimo ensaio sobre a finitude e o amor.

A finitude corre por conta do narrador –que é a própria morte, que todos vamos encontrar algum dia, questão de tempo. E o cenário é desenhado num aldeia da Alemanha, durante a guerra. As atrocidades do nazismo, o holocausto, a perseguição implacável –elementos que poderiam ser lugar comum- resultam aqui decorados justos para um mergulho antropológico de maior profundidade.

O amor transborda das personagens principais: Liesel, o amiguinho Rudy, Max, Hans, Rosa (abrandando aos poucos uma dureza que não é real), e se espalha contagiando os outros. Assim vão sendo apresentadas pessoas normais, de bom coração, que amavam sua pátria, que discordavam da política fanática do nacional socialismo, que trabalhavam honestamente, e cuidavam uns dos outros. E até garotos que admiravam Jessie Owen, e pintavam de preto a sua cara na hora de competir em alguma corrida no colégio. Um desaforo total para a raça ariana! Não eram apenas os oficiais da Operação Valkíria –ótimo filme, que revi recentemente- os únicos dissidentes da política do III Reich. Finitude e amor; um amor que é forte como a morte em palavras da Bíblia (neste caso a frase é apropriadíssima), e por isso consegue oferecer o contraponto adequado neste poema encantador impresso no celuloide.

Liesel não sabe ler mas intui que há algo nos livros que lhe pode trazer respostas para a sua vida dolorida. Hans ensina a ela as primeiras letras – literalmente falando- e Liesel embala nos livros, nas palavras que anota nas paredes do porão. Max, o refugiado que a família esconde, é o outro catalisador intelectual da menina, que não mais consegue parar de ler. E entre palavras estampadas e livros, lidos e relidos, aflora a camaradagem, a amizade sincera, a ternura firme e comovente, que destila de quem vai conformando sua alma com a sintonia dos seres humanos que enchem as páginas dos livros. “Você lembrou eles que somos humanos, lembrou-lhes da humanidade que parecem haver perdido” –explica Max para a menina, surpresa das reações irracionais dos soldados.

“As palavras são vida; a memória é como o escriva da alma dizia Aristóteles”. É Max, em suas lições a meia luz no porão úmido e frio. Lembrei de Borges que continuava comprando livros, mesmo cego, porque precisava rodear-se da sua amável presença. Precisava tocá-los, cheirá-los, aconchegava-se com eles.

Os livros nos permitem digerir as experiências vitais. São como a lente através da qual visualizamos o sentido do nosso acontecer vital. Interlocutores, professores talvez, que traduzem, na linguagem da alma, as vivências que nos inundam. Essa é a grande diferença que a leitura proporciona: somente quem dialoga com a cultura que lhe precedeu, com aqueles que descrevem os perfis das gentes, é capaz de entender a sua própria vida. Os que não leem, vivem sem perceber, não acumulam experiência, carecem de sabedoria: não por falta de matéria prima, mas por não trabalhá-la no forno lento que a leitura proporciona.

Vivemos numa sociedade rápida, on line. Estamos informados, sabemos o que acontece no mundo em intervalo de segundos; mas nos assemelhamos a um cego em tiroteio: falta talento para saber realmente o que está acontecendo, para interpretá-lo e formar critério próprio. Abdicamos de ter opinião e nos contentamos em repetir o que se diz nas redes sociais. Já dizia um amigo que a internet –de inegável ajuda e possibilidades magníficas- é como parede de banheiro: cada um escreve o que bem entende, e nem sempre com bom gosto. Nos é brindada a possibilidade de descarregar todo tipo de arquivos visuais, auditivos, até de texto. Mas não lemos. Damos uma vista d’olhos, sabemos de que vai a coisa, nos colocamos ao dia, e tocamos a vida, quer dizer, passamos para os seguintes arquivos –tem milhares na fila- ou simplesmente os estocamos.

Meu avó dizia que Hitler perdeu a guerra por não ter lido história, pois cometeu o mesmo erro de Napoleão, ao enfrentar o general inverno na Rússia. Eu acrescentaria que nem história, nem literatura, já que Tolstoi cantou a péssima jogada –a de Napoleão, se entende- de modo solene em Guerra e Paz. A retirada estratégica do Marechal Kutuzov depois da batalha de Borodino, deixando os franceses esgotar-se sem adversários visíveis, teve seu remake versão III Reich, em Stalingrado. Leio nestes dias um artigo de quem foi presidente da Georgia, comentando as intenções imperialistas do camarada Putin na Crimeia: “nos anos 30, os alemães invadiram a Tchecoslováquia alegando que tinham de proteger a população germânica que lá morava”. Sem história, sem literatura, somos neófitos vitais, nos deslumbramos com as coisas que acontecem, sem reparar que a humanidade recicla as histórias, pois é próprio da condição humana.

Tomei conhecimento há pouco, por motivos profissionais, de uma espinhosa questão familiar. Parece que a mãe de família desconfiava de uma conduta imprópria do marido, e ninguém queria tocar no tema, para evitar incômodos. “Ela já sabe –disse eu. Veja o último filme da Meryl Streep, Álbum de família. As mulheres sabem de tudo antes de que se comente com elas”. Dias depois fiquei sabendo que minha apreciação era correta. Lembrei de “A Idade da Inocência”, o romance de Edith Wharton onde a “inocente protagonista” está por dentro de tudo.

Enquanto escrevo estas linhas, acodem a minha mente multidão de exemplos que estavam dormidos na memória. Nem lembrava deles, mas estavam lá. Basta uma faísca para eles acordarem; e vir em auxilio do raciocínio, esclarecendo a situação que se contempla e que alguém, séculos atrás, descreveu com pasmosa semelhança num romance, ou abordou com genialidade num ensaio. Dizem que a cultura é o que sobra quando se esqueceu tudo. Na verdade, não se esquece; permanece adormecida, mas à espreita do momento vital.

Filmes e livros que nos ajudam a entender a vida. A nossa própria vida primeiro, para aventurar-se depois na vida alheia. É a comunidade dos homens contando suas histórias, aprendendo com elas. Assim faziam aquelas personagens –vai mais um dos exemplos que não consigo segurar- no país dos homens-livros, o surpreendente filme de François Truffaut, Fahrenheit 451. Essa é a temperatura na qual arde o papel. E os bombeiros, ao invés de apagar incêndios, colocam fogo….nas bibliotecas. É proibido ler, ter livros é crime. Um bombeiro –parente da nossa Liesel talvez- cai na tentação, guarda um livro, começa a ler…..No país dos homens livro, os habitantes sabem de cor as obras clássicas, e os velhos contam-nas para os jovens, para assim perpetuar a cultura. Pessoas que trocaram seus nomes pelos livros que contam: O Príncipe, Orgulho e Preconceito, o Pickwick de Dickens, Esperando Godot, Alice no Pais das Maravilhas, a República de Platão.

Fosse apenas para despertar o gosto para a leitura –essa sim é uma necessidade a ser criada, uma adição altamente recomendável- já valeria ver a fita. Contudo, o filme é muito mais do que isso. É o amor que, embalado nos livros e nas palavras, contorna a finitude, faz viver uma vida plena, para saber termina-la com o espírito repleto de paz.

capa A menina que roubava livros

 

www.pablogonzalezblasco.com.br

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* Dr. Pablo Gonzalez Blasco é Médico e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002), Membro Fundador e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor de diversos livros, como “O Médico de Família, hoje”, “Medicina de Família & Cinema” e “Educação da Afetividade através do Cinema”. Mantém o site "Pablo Gonzalez Blasco - Educar no Humanismo", onde publica comentários de filmes atuais e de livros, e também ensaios sobre antropologia e perspectivas éticas do quotidiano, humanização e relacionamento, educação da afetividade e das emoções.

 

Fonte: www.pablogonzalezblasco.com.br

Publicado no Portal da Família em 31/03/2014

 

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